As incertezas em relação a realização do Censo Demográfico tem gerado reações de diversas vozes dentro do IBGE. Uma das mais firmes e’ a de Paulo de Martino Jannuzzi, professor da ENCE desde 2002. Além de ter exercido a função de analista de projetos da Fundação SEADE e de professor da PUC de Campinas, Jannuzzi foi secretário de Avaliação e Gestão da Informação do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, tendo publicado textos livros sobre Indicadores Sociais, Condições de Vida e Avaliação de Políticas Públicas.
São mais de 130 anos de Censo só na história republicana do Brasil. Quais as diferenças entre as primeiras operações censitárias e as que o IBGE realizou nas últimas décadas?
Em 2022 vamos completar 150 anos de Censos no país, considerando que o primeiro deles foi realizado em 1872. O primeiro censo era para ter sido realizado 20 anos antes, mas as resistências da elite agrária acabaram adiando sua organização e aplicação. Esse é um fato revelador de que as dificuldades de levantamentos estatísticos por parte de segmentos da elite nacional vem de longa data. Esse primeiro censo tinha cerca de 14 perguntas e permitiu a primeira estimativa mais robusta de volume populacional do Brasil, assim como a estrutura demográfica e base produtiva do país. Ao longo das décadas seguintes o Censo teve seu escopo investigativo ampliado, de modo a responder às demandas de uma sociedade mais complexa, mais urbana, com estrutura econômica e mercado de trabalho mais diversificado, além de atender às necessidades de informação para planejamento governamental e políticas públicas. Com a introdução do questionário da amostra no Censo de 1960 e as novas tecnologias de levantamento e processamento de dados, abriu-se a possibilidade de dispor de um temário investigativo mais amplo. Assim, chegamos a um Censo de mais de 110 quesitos, mas com pressões para introduzir novos temas, em decorrência da relevância que as informações censitárias têm demonstrado para a formulação de políticas públicas ao nível local nos últimos 30 anos.
Além da contagem da população, qual e’ a importância do Censo Demográfico para o país? Até que ponto o Censo influencia as políticas públicas?
Censos demográficos e contagem populacional, realizados sistematicamente, cumprem, em primeiro lugar, funções muito importantes para atualizar as referências municipais de população total, por idade e sexo. O Brasil é um país de grande mobilidade interna e os modelos de elaboração de estimativas populacionais sempre terão suas limitações nas localidades de maior dinamismo demográfico. Essas informações são básicas como parâmetros para atualizar a representação política nas casas legislativas – Câmara de Vereadores, Assembleia Legislativa e Câmara de Deputados – e para repartição de recursos públicos arrecadados – ICMS, IPVA, Fundo de Participação dos Municípios, Estados, entre outros. Os censos também têm usos instrumentais e analíticos importantes da base produtiva local e estrutura do mercado de trabalho nos municípios, trazendo dados para a decisão empresarial e para políticas de desenvolvimento local. Além disso, por sua abrangência mais ampla, os censos trazem informações cruciais para políticas públicas, das mais amplas e universais, como aquelas voltadas à atenção básica em saúde, vacinação, vagas em creches e escolas, programas habitacionais, assistência social, ‘as mais específicas ou orientadas a grupos populacionais, como as políticas de cotas, pessoas com deficiências, populações isoladas, dentre outras.
O Governo tem razões para impor um enxugamento da estrutura e do questionário do Censo? O Censo brasileiro é caro?
O Censo brasileiro não é caro, qualquer que seja o parâmetro a ser usado para avaliar seu custo, pelos usos efetivos e potenciais que se faça dele. Se o Censo custasse três bilhões de reais, o custo por habitante seria de cerca de 15 reais por brasileiro. Será que esse valor não é justificável pelos usos que essa informação terá nos próximos dez anos para balizar adequadamente os programas públicos, na esfera municipal, para vacinação, construção de creches, alocação de profissionais de saúde, professores, proteção social, só para citar alguns exemplos mais básicos ? Qual o custo de não dispor de vacinas em número suficiente para atender a demanda populacional, por exemplo ? Ou qual o custo ou desperdício de recursos de se realizar uma compra de vacinas muito acima da demanda estimada de aplicação ? Há uma comparação básica que imagino que mostraria claramente como os Censos Demográficos se pagam: veja-se quanto se investe no país na elaboração e atualização dos Planos Diretores de Desenvolvimento Urbano, necessários para orientar projetos locais de moradias populares, ordenamento urbano, construção de escolas, decisões de agentes imobiliários, etc. Municípios médios e grandes precisam atualizá-los a cada dez a quinze anos e eles custam de 300 mil a 1,5 milhão de reais. Qual o custo ou desperdício de recursos de não se dispor de informação básica atualizada sobre a realidade municipal nesses projetos?
Há em curso no Brasil uma política de desmonte dos serviços públicos, que avançou com o chamado teto de gastos e se intensificou no atual governo, o que inclui o IBGE. O que isso pode representar para o país nos próximos anos na área de Ciência e Tecnologia?
O teto de gastos é, sem dúvida, um retrocesso e uma trava ao projeto político-institucional pactuado na Constituição de 1988. Estávamos seguindo a trajetória civilizacional dos países europeus no século XX, implementando um conjunto mais amplo de políticas públicas em vários campos programáticos. Saímos de uma carga fiscal de 16% nos anos 1980 para 35% nos anos 2000, o que permitiu que implementássemos políticas e programas fundamentais para, inclusive, enfrentar a pandemia com algum sucesso. Já imaginou o desastre social e sanitário que teríamos sofrido sem o SUS, sem o Cadastro Único, sem o Bolsa-Família, sem a distribuição de cestas básicas com recursos da merenda escolar? Estivesse o teto de gastos vigente há mais tempo, o quadro seria muito pior. As instituições públicas de produção de informação, conhecimento e estudos estão também sendo afetadas, como consequência do desprestígio das políticas públicas nesses últimos 5 anos. As instituições ainda têm conseguido resistir, mas a falta de recursos para compra de equipamentos, a ausência de concursos, congelamento salarial nas universidades, centros de pesquisa e produção de dados e informação, como o IBGE, terão dificuldades ainda maiores de preservar suas atividades fundamentais.
A direção anterior e a atual do IBGE rebaixaram a demanda de verbas e aceitaram recursos muito aquém do estimado para a realização do próximo Censo. Como isso pode afetar a qualidade do trabalho?
De fato, há uma apreensão com relação à diferença entre o orçamento estimado em 2019, de 3,5 bilhões de reais para o Censo, com o recurso previsto de 2,3 bilhões para sua realização. Não tenho elementos para aprofundar essa análise, mas a diferença é muito grande e os custos de produtos e serviços aumentaram significativamente nesses últimos três anos. Ter um Censo em 2022 mal realizado, por falta de recursos, seria muito pior que não tê-lo, ou que adiá-lo.
2022 também será um ano de eleições. O que você espera do próximo governo em relação ao setor público e ao IBGE?
Espero que a sociedade brasileira retome o projeto civilizatório pactuado em 1988, de um país com direitos básicos de cidadania assegurado a todos os brasileiros, com respeito às instituições republicanas e ao rito democrático e participativo. Acredito sinceramente que vamos retomar esse projeto, depois do que experimentamos entre 1994 e 2015, e o quadro desalentador dos últimos cinco anos.
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