Um quarto da população brasileira (cerca de 50 milhões de pessoas), ainda não foi contabilizada pelo Censo 2022. Trata-se de um imenso atraso na operação, tanto em relação ao seu planejamento (era esperado que o Censo terminasse até o final de Outubro) quanto se comparado ao recenseamento de 2010, que no mês de novembro já divulgava resultados substanciais.
O atraso verifica-se, ainda que em diferentes graus, em todas as unidades da federação, atestando a existência de um problema sistêmico. Nesse momento já é possível vislumbrar que o recenseamento só poderá ser concluído com o prosseguimento da coleta nos primeiros meses de 2023.
Essa situação não é de modo algum uma surpresa. As dificuldades do Censo revelam o processo de desmonte do IBGE, há muito apontado pela ASSIBGE. Mais especificamente, já em 2019 a ASSIBGE alertava que o corte orçamentário do Censo e a alteração de seu projeto técnico – determinados pelo Ministro Paulo Guedes e acatados pela direção por ele nomeada no IBGE – traziam sérios riscos à operação censitária.
Nesse momento os trabalhadores do IBGE, efetivos e temporários, se encontram em campo buscando concluir a operação da melhor forma possível. Já é possível, porém, fazer um balanço preliminar do Censo 2022. Nesse documento, buscamos apontar as principais razões para a situação vivenciada pelo Censo Demográfico.
1) Corte no orçamento:
Inicialmente previsto para realização em 2020 com orçamento de R$3,1 Bilhões naquele ano (valor que atualizado pela inflação equivaleria a R$3,7 Bilhões em 2022), o censo teve seu orçamento cortado para R$2,3 Bilhões. Para comparação, em 2010 a população brasileira era 10% menor do que a atual, mas ainda assim o orçamento do Censo de 2010, atualizado pela inflação, equivaleria a R$3,4 Bilhões em 2022.
A desidratação do orçamento implicou na compactação de toda estrutura do Censo: redução das equipes, diminuição na divulgação, corte no número de equipamentos e combustível, e finalmente, redução nos valores pagos aos recenseadores e supervisores.
As baixas remunerações dos recenseadores provocaram pouca procura por vagas, alta desistências e produção de questionário em ritmo lento. De um total de cerca de 180 mil recenseadores previstos para estarem trabalhando no auge da operação, apenas 140 mil estavam contratados no mês de outubro, e desse total apenas 95 mil eram considerados produtivos, o que corresponde a 52% do total de vagas disponíveis e previstas para a operação.
2) Falta de servidores efetivos:
Enquanto na operação censitária de 2010 o IBGE contava com 7 mil funcionários efetivos, no momento o instituto conta com pouco mais de 4 mil. O quadro reduzido resultou em uma série de gargalos na área técnica, administrativa e de informática. Para organização da rede de coleta censitária, o IBGE teve que contratar trabalhadores temporários para preencher 1.343 vagas para Coordenador de Subárea temporário (CCS) e 31 vaga para Coordenador de Área, postos estratégicos para assegurar agilidade e qualidade no Censo e que eram ocupados, nas edições anteriores, por funcionários do quadro. Sem trabalhadores experientes e conhecedores do território e dos trâmites do IBGE, o desenrolar da operação se tornou mais lento e aumentou o desencontro de informações.
O último concurso do IBGE foi realizado em 2016 e hoje os trabalhadores temporários (mesmo excluindo o pessoal contratado para o Censo Demográfico) são 60% da força de trabalho do IBGE, atuando em pesquisas contínuas e realizando atividades de supervisores. Atualmente, 80% das agências do IBGE contam apenas com 3 ou menos servidores efetivos e 20% delas contam com apenas um servidor.
3) Constantes adaptações e mudanças de rumo:
Após o corte orçamentário, a então presidente do IBGE, Susana Guerra, passou a implementar mudanças no projeto técnico do Censo recorrendo a gambiarras e improvisos para se adequar ao novo orçamento. Por conta disso, o Censo foi a campo sem que se tivesse testado adequadamente parte do questionário, sistemas de informática, métodos de divulgação, o trabalho de supervisão, entre outras coisas. No bojo dessas alterações, Susana Guerra exonerou os diretores de pesquisa e de informática do IBGE, substituindo o primeiro por uma pessoa externa à instituição.
Já durante a operação, constatado o atraso na coleta, a direção do IBGE recorreu a medidas não planejadas, como deslocamento de pessoal das pesquisas regulares, mudanças de taxas de valor dos setores, mudanças no fluxo de pagamento dos recenseadores, redução no treinamento, alterações no plano de supervisão, entre outras. Por um lado, essas mudanças atestam os erros de planejamento anteriores. Por outro, são incapazes de contornar os problemas estruturais encontrados.
4) Atrasos nos pagamentos:
Já nos primeiros dias da operação de coleta, o IBGE enfrentou atrasos no processamento dos pagamentos – primeiro das ajudas de custos do treinamento, depois de auxílios locomoções e pagamento por produção.
Provocados por falta de pessoal nas áreas de informática e RH, bem como pela utilização de um sistema que não havia sido testado, os atrasos nos pagamentos tiveram grande repercussão na imprensa e redes sociais.
Embora os problemas tenham reduzido, alguns casos de atraso persistem até hoje. Agravados por severas deficiências na comunicação entre o IBGE e os recenseadores, os atrasos nos pagamentos somaram-se aos baixos valores, a violência urbana no trabalho de campo e outras dificuldades, propiciando desistências e um movimento de mobilização autônomo organizados pelos recenseadores contra as precárias condições de trabalho.
5) Adiamentos sucessivos da operação:
No ano de 2020 a operação foi cancelada por conta da pandemia. Em 2021, o Censo foi adiado novamente por conta do corte de 95% das verbas no projeto de lei orçamentária. Esses dois adiamentos causaram o cancelamento dos processos seletivos de recenseadores e supervisores. Os processos cancelados, tanto de 2020 e 2021, foram marcados por problemas na devolução das taxas de inscrição e comunicação inábil do RH do IBGE com os inscritos, o que reduziu o número de inscritos no processo seletivo de 2022 e fez com que muitos recenseadores já entrassem carregados de desconfiança em relação ao IBGE.
6) Incerteza sobre a realização do Censo:
O Governo Bolsonaro deixou claro desde o início do mandato que produzir estatísticas oficiais para monitorar políticas públicas não era uma prioridade para o seu governo. Esse desprezo ficou evidente nas reiteradas falas negativas do Presidente da República sobre os resultados das pesquisas do IBGE; nos ataques de Paulo Guedes aos Servidores e ao Serviço Público e na captura do orçamento do Censo em 2021.
É bastante duvidoso se o Censo teria de fato sido iniciado no Governo Bolsonaro se não houvesse uma determinação explícita do Supremo Tribunal Federal nesse sentido. O clima de incerteza, tanto entre os técnicos do IBGE como na sociedade geral, foi um elemento que fragilizou a operação.
7) Ambiente hostil para realização de pesquisas:
O Presidente Bolsonaro criticou, ao longo do seu mandato, as estatísticas do IBGE e sempre manteve sob suspeita, em seus discursos e práticas, a ciência, seja negando a eficácia da vacina ou através do sucateamento dos órgãos de ciência e tecnologia. O Ministro Paulo Guedes ofendeu em diversas oportunidades servidores públicos chamando-os de parasitas ou responsabilizando-os pela precarização do atendimento ao cidadão.
Esse ambiente negacionista e de ataque aos servidores públicos foi acentuado com a polarização política que associa muitas vezes pesquisa demográfica à esquerda ou à pesquisa eleitoral. Além desses fatores, a violência urbana e a falta de divulgação do Censo contribuíram para o aumento no número de recusas e violências contra recenseadores. Esses fatores tornaram os ataques aos recenseadores cada vez mais frequentes e contribuíram para o aumento das desistências.
Conclusão:
Além do atraso na coleta, os processos descritos acima podem ter outros impactos, cuja análise ainda não pode ser feita. De forma mais imediata, é preciso alertar que o simples prolongamento da coleta traz riscos à qualidade da informação, na medida em que as entrevistas se distanciam da data de referência do censo (31 de julho).
O Censo é o mais importante produto do IBGE e tem papel estruturante para o Instituto, ele é quem serve para determinar a amostra de diversas pesquisas, tanto do IBGE como de outras instituições. Como momento de maior visibilidade do órgão, o bom andamento do Censo é essencial para a imagem do IBGE perante a sociedade.
Existem ainda outros riscos. O atraso no recenseamento permitiu a adoção, justificada como emergencial, de uma série de adaptações que precarizam o processo de trabalho: contratação sem processo seletivo, afrouxamento dos requisitos para contratação, redução do treinamento, remanejamento não planejado de pessoal das pesquisas regulares para o recenseamento, flexibilização no plano de supervisão, cancelamento de feriados e contratação de consultores. Todas essas ações improvisadas acendem o sinal de alerta para o uso do Censo como um balão de ensaio de formas cada vez mais precárias de trabalho – o que traria enormes prejuízos à produção estatística.
Nesse momento em que o Brasil entra em fase de reconstrução política, social e econômica, o atraso do Censo demonstra a impossibilidade de uma produção estatística consistente sem que haja a reconstrução do IBGE e do sistema estatístico nacional. A ASSIBGE-SN reforça a necessidade de concurso público, orçamento e autonomia técnica para o IBGE visando a reconstituição da capacidade técnica e operacional do órgão. Sem essas condições elementares, aumenta o risco do Brasil sofrer um apagão estatístico que afetará o planejamento das políticas públicas e o conhecimento da realidade brasileira.
[…] Em dezembro do último ano, produzimos um balanço crítico da operação censitária de 2022 (https://assibge.org.br/avaliacao-da-assibge-sn-sobre-o-atraso-do-censo-2022/ ). Não vamos repetir aqui […]