Censo adiado e reduzido cria risco de “apagão estatístico”
Após corte de mais de 40% no orçamento, próximo levantamento do IBGE terá menos questões e pode ficar até para 2022, com impactos sobre políticas públicas, transferências de impostos e investimentos de empresas.
por: José Gabriel Navarro – DW BRASIL
A cada dez anos, o Brasil faz um check-up completo para verificar o que vai bem, o que vai mal, e definir prioridades. Mas a próxima série de exames está atrasada, com orçamento reduzido, e menos abrangente do que o recomendado.
É essa a avaliação de especialistas dentro e fora do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) consultados pela DW Brasil a respeito do próximo Censo demográfico, originalmente programado para 2020 e adiado por causa da pandemia de Covid-19. O IBGE, ligado ao Ministério da Economia, é o responsável pelo levantamento.
São três os principais problemas envolvendo o Censo. Primeiramente, em 2019, foi anunciada uma redução no número de questões a serem feitas pelos recenseadores, apesar de as perguntas iniciais terem sido sugeridas por um grupo de estudiosos do próprio IBGE.
Depois, este ano, a pandemia inviabilizou a realização do levantamento, remarcado para 2021. Porém, ainda restam dúvidas sobre se visitar mais de 70 milhões de domicílios no segundo semestre do ano que vem será seguro, e o Censo poderá ser adiado de novo.
Finalmente, o orçamento, que até 2019 estava estimado em R$ 3,4 bilhões, sofreu um corte de 41% e ficou em R$ 2 bilhões.
“Infelizmente, a proposta de discussão técnica acabou ideologizada”, avalia o ex-diretor de pesquisas (2014-2017) e ex-presidente (2017-2019) do IBGE Roberto Olinto.
Já Paulo Jannuzzi, professor da Escola Nacional de Ciências Estatísticas (Ence) do instituto, é mais incisivo: “É um corte meio burro, porque não importa exatamente o tamanho do questionário. É um equívoco”.
A economista e dirigente nacional da Associação e Sindicato Nacional dos Servidores do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (Assibge-SN), Dione de Oliveira, concorda. “Queremos fazer o Censo, mas com qualidade e sem experimentalismo. O Censo continua sob risco: o risco orçamentário, e o risco de planejamento técnico, por conta da pandemia e por conta das, digamos, ‘propostas arrojadas‘ da direção.”
O enxugamento do número de perguntas afetou os dois questionários do Censo: o básico, que contém questões a serem feitas em todas as residências, e o da amostra, que é mais amplo e utilizado apenas em 10% do total de domicílios.
De acordo com Oliveira, foram removidas, por exemplo, perguntas sobre se o cidadão vive em casa própria ou de aluguel, e, se for este o caso, o quanto gasta com aluguel. Também ficaram de fora questões sobre fluxo migratório, tanto dentro do Brasil quanto a partir de outros países, e sobre se os residentes estudam em instituições públicas ou privadas.
Além disso, o foco continuará apenas na renda da pessoa que chefia o domicílio, ignorando a renda total de uma família. As questões sobre bens de consumo duráveis, como televisão, telefone, motocicleta e automóvel, também devem ser eliminadas do questionário da amostra: os recenseadores deverão perguntar apenas se os brasileiros têm internet e geladeira.
Tudo isso contribui para o que especialistas no Brasil vêm chamando de “apagão estatístico”. Na prática, deixar de fazer essas perguntas torna mais difícil mensurar a pobreza no Brasil e desenvolver políticas de redistribuição de renda, imigração e acesso à educação.
A redução do número de questões foi anunciada com a redução do orçamento. A nova direção do IBGE no governo de Jair Bolsonaro, comandada pela presidente do instituto, Susana Cordeiro Guerra, sugere que questionários menores possibilitam um corte orçamentário.
Entretanto, um funcionário do IBGE que participou da elaboração de diversos censos ao longo das últimas décadas e preferiu não se identificar afirma que a redução no número de perguntas em um Censo experimental realizado em Poços de Caldas (MG) apenas diminuiu o tempo médio de aplicação do questionário básico de sete para cinco minutos.
Tanto esse funcionário quanto os outros especialistas concordam que o número de perguntas pesa pouco nas despesas do Censo. A maior parte dos gastos está no deslocamento de centenas de milhares de recenseadores até cada uma das residências e o fato de que, caso não se encontre ninguém, é preciso retornar para conseguir entrevistar um morador.
Problema novo, velho desafio
Também é consenso que a falta de verba para o IBGE de modo geral não vem de hoje. Em 2015, por exemplo, a contagem populacional, que deve ser feita a cada cinco anos, foi cancelada por esse mesmo motivo – o que significa que estimativas sobre o número de habitantes do Brasil ainda se baseiam em dados de mais de uma década atrás.
Os orçamentos menores têm impacto tanto sobre o quadro de funcionários do instituto como sobre os recursos do Censo. “A perda de pessoal é um processo que vem de pelo menos dez anos, com aposentadorias e demissões sem que se tenha concursos que reponham as perdas. Estas não são apenas quantitativas, há a perda de conhecimento. Muitos servidores com muita experiência saem sem repassarem esse conhecimento por não terem a quem repassar”, afirma o ex-presidente Olinto.
“Mesmo nos governos do PT, não tivemos a atenção que achamos que deveríamos ter”, acrescenta a sindicalista Oliveira. “Tem um número enorme de cargos vagos que está sendo preenchido por trabalho temporário, que é uma mão-de-obra que fica no máximo três anos na casa. Isso compromete a memória institucional. Você treina, treina, treina e a pessoa vai embora.”
O funcionário veterano do IBGE que preferiu ficar anônimo diz que também os supervisores contratados especialmente para o Censo receberão um pagamento menor do que o previsto. Isso é considerado um problema porque são essas as pessoas responsáveis por garantir a qualidade do levantamento em cada cidade pesquisada. Se a remuneração não for atraente, elas podem abandonar o projeto, comprometendo o resultado final. O orçamento menor também ameaça a reposição de equipamentos necessários para o recenseamento.
De acordo com a mesma fonte, houve um corte de aproximadamente 75% na verba destinada à comunicação. Na avaliação dos especialistas entrevistados, isso também afeta o recenseamento. “Num Censo, você tem que explicar às pessoas que elas vão receber alguém, que tem que responder um questionário, que alguns vão gastar de cinco a dez minutos, outros vão gastar de dez a 20 minutos, que os dados são sigilosos, que o IBGE não divulga dados para ninguém”, lembra Olinto. “Agora, com a Covid-19, você vai ter que falar da vacinação [dos agentes do IBGE].”
O velho problema orçamentário do instituto encontrou no próximo Censo, porém, um novo e maior desafio. “A questão orçamentária, para as pesquisas, é crônica. Mas nada como agora”, diz Oliveira. Ela, assim como Olinto, vê hoje no IBGE uma maior “influência externa”, com a ideologia do governo Bolsonaro aparentemente desempenhando um papel maior do que os critérios técnicos no planejamento e na execução do Censo.
Paralelamente, existe no instituto a impressão de que a atual presidente, Susana Guerra, foi alçada a esse cargo devido à sua afinidade política com o ministro da Economia, Paulo Guedes. Ela é amiga da filha dele, Paula Drumond Guedes, e também a pessoa mais jovem a assumir a presidência do IBGE: Guerra tinha 37 anos quando tomou posse, em fevereiro de 2019. A presidente já afirmou que não vai voltar atrás em nenhuma das decisões envolvendo o enxugamento do Censo e que não há relação entre a redução do questionário e o corte no orçamento.
Procurado pela DW Brasil, o IBGE comunicou que não vai se manifestar sobre as críticas ao Censo.
Entrevistas à distância rendem menos
Enquanto continua incerto se o Censo vai ocorrer em 2021 – uma vez que, para isso, é preciso garantir que todos estejam imunizados ou protegidos –, alternativas vêm sendo discutidas. Uma delas é passar a utilizar bancos de dados de órgãos públicos para obter informações como número de imigrantes e de pessoas vivendo em situação de pobreza.
Os maiores obstáculos para isso são integrar esses sistemas de dados ao IBGE e garantir o fornecimento de informações fidedignas. Oliveira explica que o registro de imigrantes da Polícia Federal, por exemplo, não inclui necessariamente todos que chegam por terra, como é o caso de venezuelanos no estado de Roraima.
“Alguns países desenvolvidos podem dispensar censos demográficos porque já têm sistemas de proteção social abrangentes: desde o momento em que uma criança nasce, ela já está no banco de dados. Os eventos vitais e civis estão registrados e passíveis de serem captados nesses bancos de dados de sistemas de proteção social”, afirma o professor da Ence Paulo Jannuzzi, que também foi, de 2011 a 2016, secretário de Avaliação e Gestão de Informação do hoje extinto Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.
“No Brasil, houve avanços, mas você ainda não tem um sistema dessa natureza. O Censo tem uma razão para ser detalhado: ele é, de fato, um instrumento de identificação da cidadania. Para o próprio IBGE isso foi se tornando claro na medida em que vários grupos demográficos minoritários pleiteavam a sua visibilidade através do censo demográfico, como agora, em 2020, os quilombolas”, continua Jannuzzi, referindo-se a comunidades que passarão a contar como um recorte específico dentro do universo de brasileiros recenseados.
Outra possibilidade é realizar o Censo por telefone. Mas, além de nem toda residência necessariamente contar com um aparelho, isso gera outros riscos para o levantamento.
O funcionário do IBGE que preferiu não se identificar conta que metade das tentativas de contato telefônico para a realização das edições mais recentes da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) têm sido recusadas.
Olinto, o ex-presidente do instituto, acrescenta que tentativas de realizar o Censo via internet tiveram taxa de resposta em torno de 6%. Ou seja, nenhuma dessas opções teria a mesma abrangência que um levantamento com ida a residências.
Risco para administrações municipais
O adiamento, a redução do número de questões e o corte orçamentário que ameaça a qualidade do Censo representam um problema de maior ordem para as administrações municipais, sobretudo aquelas de cidades menores.
As transferências do Fundo de Participação dos Municípios (FPM), do IPVA e do ICMS são muito importantes na composição da receita de municípios de até 50 mil habitantes, pois têm relação com o tamanho da população. “Uma estimativa atualizada é fundamental, e adiar esse levantamento vai ter impacto crucial em municípios que já vinham crescendo aceleradamente”, diz Jannuzzi.
“A grande maioria dos municípios depende de estados e do governo federal para fechar as contas”, comenta o diretor da Agenda Pública, Sergio Andrade. A entidade é uma organização da sociedade civil de interesse público (Oscip) voltada para o aprimoramento de serviços públicos.
Dados do Tesouro Nacional mostram que, antes da crise da Covid-19, nos municípios com até 50 mil habitantes, que representam 88% do total, a dependência em relação às transferências superava 80% da receita total, lembra Andrade. A dependência é ainda maior no Norte e Nordeste. Grande parte desses repasses se baseiam em dados da população, oferecidos pelo Censo.
Já a ideia de usar pesquisas menores, mas mais recentes, para definir repasses de verbas e políticas públicas esbarra num grande empecilho: a falta de abrangência. A Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios (Pnad) é feita pelo próprio IBGE com base em um número muito menor de entrevistados e apenas em locais específicos, como capitais e regiões metropolitanas, ou muito genéricos, como as unidades federativas e o Brasil.
Depender de pesquisas feitas por amostragem leva ainda a outro problema: as amostras desses estudos são definidas precisamente com base nos números levantados pelo último Censo disponível.
“O Censo é uma ferramenta básica para o planejamento de políticas públicas e também de estratégias de negócios. A Pnad fornece muitas informações atualizadas, mas como se trata de uma pesquisa amostral, ela não tem a capilaridade das informações do Censo, o que torna mais difícil o planejamento de ações de forma mais refinada”, diz o diretor da agência de pesquisa de mercado e inteligência Hello Research, Mário Mattos.
Dados importantes também para empresas
A iniciativa privada também sofre com um Censo adiado e potencialmente desfalcado. “A quantidade de informações disponíveis no Brasil ainda é muito limitada, em especial no que diz respeito aos padrões e perfis de consumo dos brasileiros”, diz Mattos. A alternativa para empresas como a dele é utilizar levantamentos setoriais e fornecidos pelos próprios clientes, além de investir recursos em pesquisas nacionais para definir o público-alvo de um produto ou serviço.
O presidente da empresa de análise de big data Decode, Renato Dolci, está de acordo. “Na pesquisa por amostragem, o exercício que o pesquisador faz é o de criar uma amostra que ‘espelhe’ o universo geral. O Censo é, justamente, o único levantamento nacional que tem como propósito entender o universo geral da população brasileira e de suas características”, afirma.
Dolci afirma, ainda, que o Censo é extremamente importante para o chamado mercado de pesquisas no Brasil porque o acesso à internet ainda não foi massificado no país. Estima-se que, em 2020, praticamente um terço dos brasileiros ainda esteja desconectado.
Esse é um dos principais desafios para a Decode, já que empresas de big data – imensos conjuntos de dados processados por meio de computadores – encontram no universo digital boa parte dos números que analisam. Para que informações atualizadas e robustas sobre o Brasil estejam disponíveis online, o Censo também é fundamental.
Uma discussão global
A pandemia afetou a realização de censos em todo o planeta. A Divisão Estatística das Nações Unidas (UNSD, na sigla em inglês) publicou uma lista em maio deste ano com algumas nações que tinham recenseamentos programados para 2020 e o que cada uma tem feito para contornar as restrições impostas pela pandemia.
A Groenlândia, que é uma região autônoma da Dinamarca, por exemplo, declarou que seu censo não seria afetado pela pandemia porque o levantamento é feito com base em dados cadastrais. Já países como o Argentina e o Equador, na América do Sul, transferiram seus recenseamentos para 2021.
Na América Latina, o Brasil ocupou em 2019 o quinto lugar no Indicador de Capacidade Estatística (SCI, na sigla em inglês), um ranking desenvolvido pelo Banco Mundial. O estudo leva em conta a competência de cada país em termos de metodologia, fontes de informação e frequência de atualização.
O economista sênior do Banco Mundial e especialista em pobreza no Brasil Gabriel Lara Ibarra avalia que o atraso no Censo faz com que o uso projeções populacionais continue necessário. “Certamente, quanto mais antigo for um censo, mais incerteza uma projeção pode ter. Entretanto, o sistema estatístico no Brasil é bastante forte e pode ter muitas fontes de dados com as quais se pode contar”, afirma.
Lara Ibarra diz que o adiamento do Censo deve comprometer a nota do Brasil na próxima edição do SCI. Ele ressalta, porém, que poderá ser uma queda temporária caso o levantamento seja realizado conforme o planejado.
Era no Banco Mundial que a atual presidente do IBGE, Susana Guerra, trabalhava até ser convocada para comandar o instituto, no Rio de Janeiro. O tempo dirá como ex-colegas – e todos os brasileiros, ansiosos por saberem mais sobre si mesmos – avaliarão os resultados da gestão dela.
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