São muitas as razões para que o Censo Demográfico em 2020 retrate com a maior fidelidade possível a realidade do país e de sua população. Trata-se de um investimento indispensável para que se possa fazer frente aos enormes desafios que teremos nos próximos dez anos. Entre eles, o enfrentamento da pobreza.
Depois de uma notável redução da pobreza no país, que perdurou até 2014, constata-se outra vez seu crescimento. Os dados disponibilizados em dezembro de 2018 pela Síntese de Indicadores Sociais do IBGE mostram que, conforme a linha de pobreza monetária adotada pelo Banco Mundial, que possuem rendimento de até 5,5 dólares por dia ou 406 reais por mês, a proporção de pessoas pobres no Brasil era de 25,7% da população em 2016 e subiu para 26,5%, em 2017. Em números absolutos, esse contingente aumentou de 52,8 milhões para 54,8 milhões de pessoas. Já o contingente de pessoas com renda inferior a 1,90 dólares por dia ou 140 reais por mês, que estariam na extrema pobreza, representava 6,6% da população do país em 2016, contra 7,4% em 2017. Em números absolutos, elevou-se de 13,5 milhões para 15,2 milhões de pessoas, somente em um ano. Esta situação se manifesta de forma diferente nas regiões do país. Se no Norte e Nordeste os pobres são respectivamente 43,1% e 43,4% da população, no Sudeste, Sul e Centro-Oeste são 15,9%, 12,3% e 17% dessas populações.
Mas que pobreza é esta? Quantos fazem parte da pobreza urbana e quantos da rural? Têm registro civil ou são invisíveis para o Estado? Qual o peso de uma nova pobreza que vem se formando a partir do atual quadro de desemprego, subemprego e daqueles que desistiram de buscar colocação no mercado de trabalho? E a crescente informalidade do trabalho repercute de que forma na população mais vulnerável? Como se organizam os esforços de sobrevivência dentro de cada domicílio? Presencia-se alguma retomada do trabalho infantil? Quais os papéis reservados a jovens e idosos nesse contexto? E mais além da pobreza monetária, como se configura a situação desses domicílios em relação às condições de habitação, saneamento e acesso de seus moradores aos serviços básicos?
Pesquisas também realizadas pelo IBGE trazem respostas parciais a muitas dessas perguntas. Particularmente, a PNAD Contínua e a POF oferecem dados importantes para o acompanhamento de nossa realidade, mas não chegam a partes do país que são provavelmente aquelas onde se encontram as populações mais vulneráveis. Por isso, o conhecimento dos dados no nível municipal, com a possibilidade de chegar aos setores censitários coletados pelo IBGE no Censo é fundamental para que as decisões governamentais acerca da aplicação de programas e políticas públicas possam ser as mais corretas, bem como permitindo o adequado direcionamento dos recursos orçamentários. Trata-se, assim, de um instrumento essencial para a construção de estratégias de médio e longo prazo para o enfrentamento da pobreza.
Causa preocupação o corte orçamentário para a realização do Censo 2020, bem como a exclusão de quesitos a serem pesquisados, contrariando aquilo que foi recomendado pelos experimentados técnicos do IBGE, que já preparavam sua realização há três anos. Essa decisão poderá ser muito danosa ao país. A interrupção de séries históricas que atestam o percurso que o país vem percorrendo e ao mesmo tempo a ausência de verificação sobre novas questões impostas pela atual realidade social enfraquecerá a efetividade de nossas políticas públicas.
Nos questionários que serão aplicados foi cortado o quesito sobre migração, o que significará que não teremos mais a informação sobre fluxos migratórios, em um momento em que eles são intensos. O quesito relativo ao valor do aluguel de domicílios não está mais no questionário da amostra, impedindo o cálculo do déficit habitacional. No tocante à rede de ensino frequentada por estudantes, não se pergunta se ela é pública ou privada. Quanto ao trabalho e a renda, deixa-se de perguntar, caso a pessoa tenha ocupação, se ela tem outros trabalhos além do principal. Além disso, a informação limita-se à pessoa de referência do domicílio, não considerando os outros moradores. Também foram retiradas as questões sobre os bens que o domicílio possui, como geladeira, automóvel e motocicleta, que antes constavam no questionário.
A alegação sobre a necessidade de gastar menos com o Censo ignora os prejuízos reais que decorrerão de uma pesquisa insuficiente e de menor qualidade. Por essas e tantas outras razões a defesa do Censo deve ser de todos.
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Francisco Menezes é ex-presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), e analista de Políticas da ActionAid no Brasil. É economista, com mestrado em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e pesquisador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE).
A ActionAid é uma organização internacional de combate à pobreza presente em 45 países. No Brasil, atua desde 1999 realizando projetos pela garantia dos direitos à alimentação, igualdade de gênero, participação popular e educação.
El País, 4 de julho de 2019
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