NÃO USEM OS DADOS DO IBGE PARA RETIRAR DIREITOS – ASPECTOS DEMOGRÁFICOS DA REFORMA DA PREVIDÊNCIA –
Os defensores da reforma da Previdência, tal como proposta pelo atual governo, acionam os indicadores demográficos para prenunciar uma suposta “hecatombe” que atingirá o sistema previdenciário em função do iminente envelhecimento populacional da sociedade brasileira. Desarmar essa “bomba relógio” seria uma tarefa necessária e imediata de modo a preservar as aposentadorias futuras.
A repetição desse mantra, que não vem de hoje, tem como objetivo fazer crer aos brasileiros e brasileiras que essa é a realidade insofismável. Nesse processo, distorcem os indicadores para traçar comparações com dimensões que não são necessariamente comparáveis, como, por exemplo, em relação aos países desenvolvidos e a realidade brasileira, trabalhadores urbanos e rurais, homens e mulheres.
Ao torturarem os dados, os defensores do governo usam o indicador expectativa média de vida a partir dos 65 anos de idade, pois, nesse, os diferenciais regionais diminuem em valores relativos, ao contrário do que acontece quando a comparação é realizada com a esperança de vida ao nascer, que reflete a incidência de morbidades ao longo da vida da pessoa e, por isso, é usado como indicativo das condições de vida e saúde de uma determinada população.
Outro aspecto demográfico que reforça essa argumentação é o do número médio de anos que um indivíduo de 20 anos esperaria viver após completar 65 anos de idade. Em 2016, uma pessoa com 20 anos no Maranhão perderia, em média, 4,7 anos de vida após alcançar os 65 anos, ao passo que, se vivesse no Distrito Federal, essa perda seria de 2,7 anos, ou seja, o risco que um e outro enfrentam nesse intervalo de anos é bem diferente, revelando as desigualdades nos estados de morbidade e risco de morte.
Enfim, chegar aos 65 anos significa a superação de fases mais agudas, como a mortalidade na infância e das mortes violentas que atinge os adultos jovens. Contudo, não significa que os anos de vida saudável, livres de incapacidades, sejam os mesmos para o trabalhador urbano e o trabalhador rural, homens e mulheres e em comparação com uma pessoa que sempre viveu na União Europeia ou nos países da OCDE.
Refletir sobre uma reforma da Previdência Social como forma de enfrentar os desafios colocados pelo envelhecimento é necessário. Contudo, pode e deve ser realizado de modo transparente e não deformado, como vem sendo tratado esse debate extremamente relevante. O primeiro ponto a ser levantado é o momento da transição demográfica que o país atravessa.
Antes de chegar à fase da população envelhecida, o Brasil vem experimentando, desde os anos 1980, a etapa do “bônus demográfico”. Isto significa que, face ao declínio dos níveis de fecundidade, a inércia demográfica provoca o aumento significativo da população em idade ativa (15 a 64 anos) e, consequentemente, a razão de dependência total diminui. Nesse cenário, potencialmente, teríamos um contingente maior de pessoas em idade de trabalhar quando comparado aos segmentos mais jovens (0 a 14 anos) e aos idosos (65 anos ou mais), ou seja, a dependência daqueles que teoricamente não fariam parte da força de trabalho seria menor.
Essa fase da transição demográfica deveria, em tese, impulsionar o desenvolvimento econômico e social, além de gerar riqueza e poupança interna. Favoreceria também a melhoria na qualidade da educação básica, sobretudo pelo fato da menor demanda por recursos para investimentos em infraestrutura. Não obstante, como no início da abertura da “janela de oportunidades” a população idosa ainda é pequena, a pressão sobre os sistemas de seguridade social, aí incluídas saúde e previdência, não seria grande.
Conforme dados do IBGE, as razões de dependência seguirão sua trajetória de queda até 2023, a partir desse ponto começariam a ser afetadas pela contribuição do segmento idoso ao indicador. Apenas em 2037 a razão de dependência de jovem se tornaria inferior à dos idosos. A população em idade ativa, por sua vez, apresentará tendência de crescimento até os anos 2040; e, em 2060, mesmo quando o volume desta população estiver declinando, serão aproximadamente 131,4 milhões de pessoas, quase o dobro do observado em 1980 e próximo ao de 2010.
Essa dinâmica demográfica possibilitaria o tempo necessário para, por exemplo, buscar um desenvolvimento econômico que incluísse no mercado formal de trabalho essa gigantesca oferta de força de trabalho; aumentasse as taxas de produtividade; investisse na melhoria da qualidade da educação de forma a passarmos a ter atividades econômicas intensivas em tecnologia e não em trabalho; aumentasse a oferta de creches, de modo a liberar a força de trabalho feminina; e alterasse as relações gênero nas esferas doméstica e laboral.
Uma vez escolhido esse caminho, a situação da Previdência Social estaria em outro patamar, o que permitiria pensar e debater com mais tranquilidade o modelo, preservando, na exata medida, as diferenças ainda existentes entre os diferentes segmentos sociais a serem atingidos.
A reforma da Previdência, tal como está proposta, com 40 anos ininterruptos de contribuição, torna praticamente impossível a missão de um trabalhador se aposentar com a integralidade de salários, considerando a histórica e atual estrutura social e de mercado de trabalho brasileiros. Fato este que se agravará caso seja aprovada a reforma trabalhista (PL 6.787/2016) e permaneça intacto o texto da terceirização aprovado na Câmara dos Deputados (PL 4.302/1998).
Outro aspecto que dificultará o acesso à aposentadoria integral diz respeito à mudança do período de contribuição, que passará de 15 para 25 anos. O governo, buscando iludir a opinião pública, alega que, nos dias atuais, 60% da força de trabalho se aposenta por idade, com requisito de 15 anos de contribuição e que essa modalidade de aposentadoria por tempo não mudaria significativamente. Omite o fato de que com a exigência de 25 anos o valor a ser recebido na aposentadoria será inferior aos observados nos dias de hoje. Além disso, criará o desestímulo à adesão ao sistema, o que efetivamente vai desmontá-lo, abrindo caminho para a privatização via regime de capitalização, no qual quem puder pagar se aposenta, quem não puder ficará ao relento.
Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD 2015 mostram que 44% da população brasileira começaram a trabalhar com até 14 anos de idade. Este percentual é ainda mais elevado nas Regiões Norte e Nordeste e atinge mais a população preta e parda. Isto significa que a aprovação do tempo mínimo de 25 anos de contribuição para aposentadoria afetará em cheio este segmento da população, em geral, inserida em ocupações informais, que se caracterizam por baixa qualificação profissional – verificada pela média de anos de estudos (6,5 anos) abaixo da média nacional (8,2 anos) –, além de auferirem rendimento médio que corresponde a 52% do auferido pelos que começam a trabalhar aos 25 anos de idade, tornando-os altamente vulneráveis aos ciclos conjunturais do mercado de trabalho.
Outro efeito perverso desta contrarreforma da Previdência recairá também sobre a população que hoje adia sua entrada no mercado de trabalho em troca de maior escolaridade, representada por aqueles que iniciam suas atividades laborais com 20 anos ou mais de idade, que constituem 10% do total da população ocupada atual. A ampliação do tempo mínimo de contribuição e o requisito de 40 anos para alcançar a integralidade do valor da aposentadoria vai gerar um desestímulo à elevação do nível de escolaridade para a totalidade dos jovens, causando um impacto direto sobre a qualificação da força de trabalho e, consequentemente, sobre a produção de conhecimento científico e tecnológico tão almejado e cada vez mais distante da realidade do nosso país.
Importante mencionar que a Previdência Social brasileira também cumpre papel redistributivo, razão pela qual a mesma faz parte da Seguridade Social, sistema criado pela Constituição de 1988, que reúne também a saúde e a assistência social. A proposta da reforma, ao se deter unicamente aos critérios atuariais, não levando em consideração essa importante característica, pode implicar, por exemplo, no aumento da vulnerabilidade daqueles domicílios que dependem do rendimento das aposentadorias e pensões.
A título de ilustração, cerca de ¼ do rendimento dos domicílios brasileiros provém de idosos com 60 anos ou mais de idade, proporção que tende a aumentar com o progressivo envelhecimento populacional. Esse percentual sobe para quase 74% quando consideramos os domicílios que possuem pelo menos um idoso morando.
Somem-se a isso os efeitos da reforma sobre o dinamismo econômico dos municípios brasileiros, em especial sobre os pequenos municípios, a grande maioria no Brasil, cuja fragilidade do mercado de trabalho coloca no rendimento dos benefícios previdenciários uma das principais – se não a principal – fontes de injeção de recursos em suas economias. Tanto a ampliação da idade para o recebimento dos benefícios, quanto sua desvinculação do salário mínimo e mesmo a redução do valor médio dos benefícios tendem a inibir esse processo, já que grande parte dos recursos é utilizada para consumo.
Estudo realizado em 2012 pelo então Ministério da Previdência Social mostra que em mais de 70% dos municípios brasileiros o repasse da previdência social era superior ao do Fundo de Participação dos Municípios (FPM). Em 2008 o percentual era de 60% o que revela uma tendência de crescimento por conta da política de valorização do salário mínimo.
Por fim, deve ser esclarecido que há uma visão equivocada em relação ao alegado déficit da Previdência. Esta visão considera apenas a despesa como natureza do problema, em vez de considerar o saldo entre suas receitas e despesas. O equívoco é ainda maior quando se pensa em uma reforma como a proposta no momento da maior depressão econômica da história do país. Em 2015 e 2016 houve queda acumulada de 7,3% do Produto Interno Bruto – PIB e também deterioração do mercado de trabalho, com altos índices de desemprego e perda brutal de emprego formal[1], ocasionando redução excepcional das receitas tributárias e previdenciárias.
Como aprovar uma medida geral, duradoura e que inibe a distribuição de renda, fundamentando-se em um momento atípico? Tais propostas não fariam sentido se o país apresentasse o cenário vivenciado antes da crise. Além da baixa desocupação, o período até 2014 foi marcado pela elevação contínua da formalização do trabalho e da ampliação das receitas previdenciárias.
A PNAD 2015 mostra ainda que 32% da população ocupada urbana não contribuiu para a Previdência naquele ano. Esta proporção sobe para 44,3% quando se considera a População Economicamente Ativa (PEA), que inclui os desempregados. Com a continuidade da crise econômica e política em 2016, este percentual hoje é ainda maior. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios-Contínua, fonte disponível para o ano de 2016, tais resultados alcançam 36,2% e 49,8%, respectivamente. Assim, o objetivo perseguido deveria ser a redução da parcela de não contribuintes urbanos, via aumento do emprego formal e incorporação crescente de mulheres e jovens no mercado de trabalho, o que elevaria a base de contribuintes e garantiria a solvência e o caráter distribuidor de renda da Previdência Social.
O uso deturpado dos dados, bem como o troca-troca de cargos, a liberação de verbas para parlamentares, bem como o alto investimento em propaganda a fim de tentar convencer a população, se explicam porque o governo perdeu a batalha de comunicação e quer impor a contrarreforma da previdência contra a vontade popular. A velocidade e o autoritarismo com que vem tramitando esta proposta não se explicam por nenhum argumento apresentado pelo governo e seus defensores. Eles estão desesperados, por que deram um tiro no pé com a aprovação da “PEC do teto dos gastos” e agora precisam destruir o sistema de seguridade social, pois senão as regras absurdas que criaram não poderão ser alcançadas. Não tem a ver com a sustentabilidade da Previdência. É uma tentativa de solucionar um erro com outro erro e, para isso, usam uma mentira para salvar outra mentira.
*Este texto foi editado pela ASSIBGE-SN a partir da colaboração de um técnico do IBGE.
[1] Para se ter uma ideia a taxa de desocupação passou de 6,7%, em 2014, para 11,3%, em 2016, segundo a Pnad Contínua. Em relação à participação dos empregos formais, registrou-se redução de 42,1% para 40,4% da proporção dos trabalhadores, em igual período.
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